Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Remate de Letra

Um blogue de pessoas que gostam de mandar o seu post de pescada.

Remate de Letra

Um blogue de pessoas que gostam de mandar o seu post de pescada.

20.Abr.21

SuperLiga: Quem marcar ganha

Nuno Oliveira

Estávamos em Maio de 1999, eu tinha 10 anos e estava sol, desde os 5 minutos de jogo que o Bayern Munique vencia o Manchester United, ia valendo o golo de Mario Basler de livre direto. 

Já se jogava a compensação quando David Beckham marcou o canto, na área Peter Schmeichel atrapalhou a defesa do Bayern, a bola sobrou para Ryan Giggs que com um remate enrolado colocou a bola à mercê de Teddy Sheringham para fazer o empate. Dois minutos volvidos, novo canto, desta vez coube a Sheringham o primeiro remate para Solskjaer, com um desvio histórico, fazer o golo da vitória e da carreira.

Estava assim virado um jogo fabuloso e que haveria de se imortalizar como a mais bela e emblemática final de sempre da Liga dos Campeões da UEFA. Lembro-me de tudo como se fosse hoje. Na minha memória, para sempre, a imagem de Samuel Koffour, central Ganês do Bayern de Munique, deitado no chão a chorar.

 

30 de Abril de 2005, Estádio do Varzim Sport Club, mais um dia de sol, na bancada, eu tinha a 10 vestida e um cachecol ao pescoço. Era o dia mais importante da história do futebol da Associação Naval 1º de Maio, bastava um ponto. O jogo não entusiasmou, os nervos eram muitos e jogámos com 10 a partir dos 67 minutos. O jogo terminaria sem golos, que interessa? Conseguimos, estávamos lá, pela primeira vez na nossa história chegávamos à primeira divisão. Uma alergia inexplicável. Um dia eterno.

Desportivamente, seguiram-se bons anos para a agora extinta Associação Naval 1º de Maio. As muitas tardes no José Bento Pessoa são uma parte importante das minhas boas memórias da juventude, as lágrimas de Vila do Conde, o golo do Léo Guerra, as desilusões na Taça de Portugal… representam tudo aquilo que não conseguimos explicar aos teóricos dos ’22 gajos de cuecas a correr atrás de uma bola’. E não, não somos nós que perdemos.

 

Mas a minha paixão pelo futebol é transversal e vai muito para lá dos grandes jogos da Liga dos Campões ou da paixão clubística, estende-se pelas competições de seleções, os Mundiais, os Europeus, a CAN (uma religião para mim), passa pelo futebol feminino, com particular destaque para aquela final do Mundial de 2011 naquele dia em que a Homare Sawa se tornou imortal. Anda pelos torneios de Toulon, pelos mundiais de sub17, pelos campeonatos domésticos e por todo o lado onde a bola role livre entre duas balizas.

 

Nos últimos dias, o mundo estremeceu com o anúncio da criação da SuperLiga Europeia. De lá para cá têm-se usado diversos argumentos para criticar a nova prova e os seus criadores. Alguns razoáveis, outros muito fraquinhos. Eu vejo tudo isto como uma enorme ironia e uma gigantesca oportunidade.

Eu amo o jogo mas não gosto particularmente de clubes nem da FIFA e das suas confederações. O único clube do meu coração está extinto e está extinto precisamente pelas razões que me fazem não gostar de clubes, de empresários e desta gente toda. Má gestão, oportunismo e vigarices várias.

Durante anos fui bombardeado com duas questões, a primeira: De que clube és? Sou da Naval. Sim, mas e dos outros? E a segunda: És do Benfica, Porto ou Sporting? De nenhum. Ah, não ligas a futebol! Em ambos os casos eu não voltava a responder e deixava-os a falar sozinhos. Há portanto um conjunto de pessoas que me considerou parvo e outro que ficou convencido que eu não gostava de futebol. Os segundos estão completamente enganados.

Como adepto de um clube pequeno há muitos anos que alerto para a desproporcionalidade de forças entre os clubes ditos “pequenos” e os ditos “grandes”. Há anos que defendo que não é aceitável que um clube como o Sport Lisboa e Benfica apresente um orçamento de 100 milhões de euros para atacar um campeonato onde alguns clubes terão orçamentos de 2 ou 3 milhões. Há anos que defendo que os clubes pequenos deviam abandonar o barco e deixar os grandes comer sozinhos na mentira que fomentam a coberto da FIFA e das respetivas confederações.

Curiosamente, com a criação desta SuperLiga os clubes ricos são agora acusados de desequilibrar o futebol, de fugirem para uma Liga Privada deixando os pobres de fora. Como se em algum momento a FIFA ou a UEFA representassem os pobres. É uma tremenda ironia que precisamente na altura em que os clubes “ricos” concebem um modelo no qual competem apenas entre si - acabando com as desproporcionalidades e com as dependências que poem permanentemente em causa a verdade desportiva - sejam acusados de estar a desequilibrar o futebol.

O que esta SuperLiga permite é precisamente acabar com o desequilibro atual, colocando os “ricos” a nadar numa piscina só para eles, permitindo aos “pobres” recuperar a essência do futebol. Deixem-nos ir. Libertemo-nos de quem nos está a destruir. Deixem-nos transformar o futebol apenas em entretenimento, deixem-nos gerir a indústria como eles querem, deixem-nos acreditar que esse é o caminho certo.

Eles acreditam que não precisam dos ‘pequenos’ e eu acredito que são os ‘pequenos’ que não precisam deles, portanto compremos tremoço, pevide e amendoim e bebamos cerveja enquanto os vemos tranquilamente cavar a própria sepultura.

Deixemos esta gente perceber que os clubes pequenos não são bombos da festa, que têm um papel neste fenómeno. Que um produto só é verdadeiramente premium enquanto for verdadeiramente raro. Que um campeonato para ser bonito precisa de equipas mais fortes e equipas mais fracas, precisa de lutas pela vitória e pela manutenção, que as memórias se fazem de subidas épicas e descidas dolorosas.

Porque eles não sabem, nem sonham, que quando o Léo Guerra marcou o golo da permanência em Penafiel eu voei de joelhos para o chão da sala aos gritos, eles não sabem, nem sonham, que as lágrimas do Koffour não eram pelo prémio de jogo, porque eles não sabem, nem sonham, que quando a bola vai à rede é golo e há pessoas verdadeiramente apaixonadas por isso. Talvez eles pensem que isto é Wrestling e talvez na cabeça deles seja mesmo.

O verdadeiro futebol, esse, sobrevirá enquanto o povo quiser, no recreio da escola, nas ruas, nas distritais, nos cafés, nas ligas secundárias, na sandes e no compal no fim do jogo dos miúdos que é, no fim de contas, o mais importante e aquilo que temos de preservar.

O nosso principal objetivo devia ser garantir que continuamos a ter clubes para os jovens praticarem desporto (incluindo futebol). Que continuamos a ter competições organizadas e credíveis para criarmos memórias. Que continuamos a viver o desporto pelos valores do desporto e pela paixão pelo jogo. E a paixão pelo jogo não está em nenhuma liga em particular mas apenas onde estiver o nosso coração.

A SuperLiga é a nossa melhor oportunidade de refundar isto tudo, de criar um mercado liberalizado de organizadores de futebol. Precisamos apenas que seja feita uma separação clara e que cada clube indique a que organismo quer pertencer. Depois o mercado fará o resto, a longo prazo não vencerá quem tiver o melhor produto, vencerá quem conquistar o coração dos verdadeiros adeptos. 

 

Naqueles dias de sol o futebol ganhou-me a mim, ganhou-me porque foi belo, eletrizante, frenético, mas também porque naqueles dias eu percebi que a essência do futebol está para lá do jogo e do dinheiro, este texto é sobre memórias, é sobre paixão, é sobre amor. Três coisas que o dinheiro não compra. A escolha para mim será sempre fácil.

4 comentários

Comentar post